Quando ela abriu os olhos, não havia nada, tudo era uma densa escuridão.
Sem forma, sem cheiro, sem espaço, sem cor, sem som.
Fechou os olhos e esperou.
– Levante menina. – A voz preenchia todo o vazio, vindo de todas as partes ao mesmo tempo. – Você já dormiu demais.
– Helena? É você? Então finalmente chegou a hora…
– Diga meu verdadeiro nome e descubra. – A voz ordenou firme e séria.
– Banshee. – O nome foi dito como um sussurro pesado e amedrontado.
Subitamente, o que era escuridão tornou-se uma luz clara e cega. Ela podia sentir que estava sendo transportada para outro lugar.
Sentia calor, vento, fome, desejo, frio, prazer, morte, água, fogo, gelo, medo.
Coragem.
Vida.
O breu deu lugar a uma grandiosa sala oval repleta de estantes cheias de livros, pergaminhos e artigos de papelaria de épocas variadas, alguns ainda nem inventados. O teto, inexistente, fora substituído por constelações e nebulosas, criando um espetáculo único do que é o Universo inexplorado.
No centro do cômodo circular, havia uma mesa e sua fiel cadeira. Logo atrás, duas poltronas estavam dispostas frente a frente e em uma delas, estava uma dama de cabelos vermelhos e olhos cinzas, que observava fixamente a recém-chegada.
– Sente-se. – Convidou estendendo a mão para a poltrona vazia – Reconhece este lugar?
– Sim. Eu ainda me lembro. – Respondeu mansamente enquanto tomava seu lugar no assento.
– Ora, não se preocupe. Ele sabe que você está aqui e lhe mandou lembranças, mesmo que ainda espere sua visita para um chá e um jogo de damas. Contudo, ele entende que você ande ocupada, não é mesmo?
– Um pouco. – Os olhos percorriam o chão de madeira antiga que já não poderia ser mais encontrada em nenhum lugar.
– Você já pode relaxar minha doce criança. Alivie a tensão das costas ou isso vai te dar uma dor terrível depois, sirva-se de alguns biscoitos da mesa e tome o que quiser. Hoje, é por minha conta.
– Isso significa que acabou?
– Mas é claro que não. Não vim até aqui para te buscar nem amaldiçoar ou coisa do tipo.
– Então, por que eu estou aqui?
– Force um pouco a memória. É você quem devem me responder. Onde você estava antes de chegar aqui?
– Em uma festa de uma cidade grande. Eu estava com fome e me sentindo fraca, então escolhi um rapaz que parecia decente e um pouco desnorteado e me alimentei dele.
– E então?
– Fui para o terraço. Havia tido uma confusão generalizada entre militares e um grupo de jovens que protestava pela liberdade daquele bairro, devo confessar que instiguei alguns daqueles jovens a avançar e alguns militares a reagir. O resultado foi um grande número de mortos e feridos e muito sangue jorrado. Comecei a absorver o que podia enquanto a chuva lavava o chão. Quando percebi, uma bala tinha atravessando a minha cabeça. Logo depois senti um toque familiar segurar minha mão antes do meu corpo cair de lá. E não me lembro de mais nada.
– Você não era de se distrair tão facilmente. Mas posso compreender, uma boa refeição quando estamos fracas sempre nos deixa um pouco, digamos, desnorteadas. E ele era até bem interessante não é?
– Sim, ele era bem decente no final das contas. Uma pena que ninguém irá lembrar-se dele. Mas me diga Helena, foi você me resgatou daquele terraço?
– Eu? Não, tenho coisas mais interessantes para fazer. Foi Morfeus que percebeu seu espírito vagando desacordado no limbo do tempo-espaço e pediu para te acordar.
– Morfeus…
– Morfeus, Sandman, Sonho, Perpétuo, Deus. Escolha um nome e durma para que ele te visite, tanto faz. O fato é que você se meteu em encrenca e agora tem coisas para resolver.
– Somos sobreviventes, os tempos mudaram para nós. Fazemos o que precisamos para continuarmos em frente. – A voz saiu gritada e raivosa.
– Quem aqui está julgando alguém? Modere o tom ao falar comigo jovenzinha. – A imposição da voz foi acompanhada da postura inclinada para frente – Eu estava lá quando você nasceu. Eu estava lá quando recebeu seu novo corpo na África. Eu estava lá quando acrescentaram novos poderes a você. Eu sei todos seus nomes, todos suas formas e todas as crenças que te dão poder. Eu sou a Anciã, Aquela Que Tudo Vê, a Dama Desesperadora, a Bruxa da Morte, A Dama De Branco. – Um vento forte soprou apagando parte das velas da biblioteca enquanto os olhos da mulher de cabelos vermelhos brilhavam como fogo azul – Eu sei quem você é, eu sei pelo o que os nossos passam no decorrer dos milênios. Não insinue que foram abandonados. Vocês permanecem vivos por que eu permito. Agora – disse retornando a postura e olhos calmos e cinzas de antes – Deixe-me recordá-la de quem você é e por que nosso amigo de terno preto está te oferecendo bolachinhas com café e chá.
– Me perdoe Senhora, não tive a intenção.
– Não precisa agir como um cachorro com o rabo as pernas. Está tudo bem. Bom, vejamos. – A mulher levantou e procurou um livro em uma das estantes. – Você se lembra da história desta biblioteca?
– Sim, ela existe até mesmo antes do próprio Senhor dos Sonhos nascer. Aqui estão todos os escritos do Universo. Os que foram publicados, os que foram esquecidos, os incompletos, os livros e contos que serão escritos. Literalmente tudo, esta aqui; ideias, invenções, contos de amor, lendas, inspirações. Basta entrar, ler e torcer para quando acordar, lembrar. – O olhar caminhava por todas as estantes da sala.
– E você se lembra da sua história? – A pergunta caiu como uma pedra lançada de uma montanha.
– Da maior parte.
– Você se lembra de como os primeiros humanos te levaram para a Terra?
– Não. Não mais.
– Você se lembra do que é Deusa?
– Não. Meu poder não tem mais influência sobre o povo da Terra, eu apenas continuo em frente.
– Entendo. – Disse enquanto voltava a se sentar na poltrona carregando um pesado exemplar coberto de poeira – Este livro aqui conta a sua história. Vou relembrá-la para você e já adianto que tenho uma última missão para você, antes de permitir que você volte para casa. Mas primeiro, você precisa resgatar seu corpo.
– Como assim?
– Ainda não percebeu que está na sua forma original? Seu corpo está sendo feito refém por um grupo de alienados que acreditam que os deuses antigos irão dominar e acabar com o mundo. Primeiro, recupere seu corpo, cuide das feridas e eu te trarei de volta para terminarmos nossa conversa.
– Como eu posso lutar, sendo que, provavelmente, meu corpo está sendo feito de saco de pancadas por adolescentes que não saem da internet, seguindo políticos mais pirados que eles próprios?
– Foi bom perguntar. – Um sorriso malicioso cobriu os lábios dela.
A mulher ruiva levantou da poltrona e caminhou em direção à mulher.
Sentou-se em seu colo e beijou os lábios com suavidade.
– Eu estou te emprestando parte do meu poder, para ir com ele, você sabe qual a pergunta deve ordenar.
– Banshee. – O nome era um sussurro entre o beijo.
– Pergunte. – Disse enquanto posicionava uma das mãos nos seios pequenos da outra.
– Banshee, diga meu nome!
– Holo.
Abriu os olhos e percebeu seu corpo estava preso com correntes grossas, coberto de hematomas, sangramentos e feridas abertas, formando uma estranha estrela dentro de um cativeiro improvisado. A sua frente, um homem conhecido lia uma revista qualquer.
– Finalmente acordou… Mas antes que arrebente estas correntes, me mate e acabe com todos os que estão aqui. Apenas me dê um minuto para que eu possa te explicar o que aconteceu.
– Diga meu nome.
– Você sempre foi e sempre será minha Rainha. Preciso que confie em mim apenas mais uma vez.
– Diga. Meu. Nome. – Vociferou enquanto a tatuagem de seu braço brilhava, fazendo crescerem chifres e asas do corpo aprisionado.
– Teu nome, minha Rainha…
“É Holo.”
Era fim de tarde quando uma forte explosão repentina acabou com um bairro inteiro de São Paulo.